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Isaba Kiambote: um olhar do candomblé sobre o bem-estar em comunidade

Lucas Greenhalgh
12 de maio de 2021
Revisão: Leopoldo C. Baratto

Na minha última coluna, discuti como o conceito de saúde está intrinsecamente ligado ao viver individual e coletivo, a subjetividades e não apenas a um objeto-doença (ou a ausência dela).

Durante minha pesquisa para observar práticas que levavam em conta essa noção mais abrangente de saúde, encontrei o projeto Isaba Kiambote. Esse projeto, como descrito no Banco de Práticas IdeaSUS, plataforma da Fiocruz em associação com o CONASS, “se pauta no desenvolvimento de variadas atividades voltadas à transmissão do conhecimento da importância do elemento vegetal nas práticas religiosas tradicionais de matriz africana, em específico de origem bantu, na promoção e na atenção à saúde”.


O projeto, encabeçado pelo Tata rya Nkisi Roberto Braga, o Tata Luazemi, promove palestras em diferentes espaços, desde terreiros até universidades, perpassando espaços formais e não-formais de ensino.


Minha curiosidade me fez buscar o contato de Tata Luazemi. Fui convidado a seu terreiro, Instituição Filantrópica e Ponto de Cultura Abassá Lumyjacarê Junsara Angola-Congo, localizado no Bairro Imperador, Nova Iguaçu (RJ), para um bate-papo para saber um pouco mais sobre seu projeto.

Chegando lá fui muito bem recebido por Tata Luazemi, o chefe da institução, Tata Sérgio BessaKavungelê, o segundo no comando, e Tata Ivan LourençoUndelê, o Tata Isaba, responsável pelas ervas sagradas.


Entre xícaras de café, nossa conversa começou com uma rápida perspectiva sobre a criação do projeto.

Tata  Luazemi: “o projeto nasceu a partir de uma apresentação na Fiocruz sobre a continuidade do uso das ervas sagradas dentro os espaços sagrados. Temos por prática e tradição usar as ervas para a cura, para limpeza, para acalmar e até para momentos de reflexão, em que usamos ervas aromáticas para criar um clima melhor”.

Tata Luazemi me diz que, além dos entrevistados, ainda participa do projeto o Dr. Abrahão de Oliveira dos Santos, Mona Nkisi Uejiá, psicólogo e professor da Universidade Federal Fluminense e coordenador do Kitembo – Laboratório de Estudos da Subjetividade e Cultura Afro-Indígena-Brasileira.


Pergunto para Tata Undelê, responsável pelo plantio, colheita e preparo das ervas sagradas, a importância das plantas para o candomblé. Ele me explica que o uso das ervas sagradas são intrínsecos à religião, e dentro dela são encontradas suas propriedades. Propriedades estas que não são apenas curativas de um ponto de vista farmacológico, mas relacionadas a vários aspectos do bem-estar.

Tata Undelê: “O candomblé não é só o rito em si, são vários elementos, sendo um deles as plantas. As plantas que energeticamente contribuem para um maior bem estar das pessoas. A forma que nós trabalhamos é uma forma religiosa: cada erva tem um princípio que vai ser utilizado em determinados momentos, não só na ingestão, mas também para retirar as energias negativas - como um banho - de forma que você possa trabalhar essas plantas e trazer a cura para quem procura um determinado benefício. Não existe candomblé sem a utilização das folhas sagradas. Cada uma tem sua função.”


Tata Undelê me explica também a responsabilidade que aquele que prepara as ervas sagradas no candomblé tem. A utilização das ervas preconiza um preparo individual daquele que as trabalha e um contexto e condições específicas de trabalho. Espaço e momento devem ter as energias corretas para trabalhar as ervas.

Tata Undelê: “Não dá para, de repente, passar para uma pessoa que ela faça em casa simplesmente pegando uma erva e trabalhando ela para si só. O complexo dentro da casa de santo é que a gente tenha o espaço, a energia e o momento correto em que as ervas serão tratadas de determinada forma, desde sua coleta até sua utilização para uma determinada função. Algumas coisas ficam dentro do espaço do candomblé, pois requerem certos conhecimentos e práticas que são internas.”

Tata Luazemí complementa falando sobre a importância das plantasno candomblé como um elemento simbólico, que carrega a vida e a relação entre a religião e a harmonia com natureza.

Tata Luazemi: “no candomblé, os elementos são a natureza. Temos lá a pedra, a água da cachoeira, a água do mar, as folhas. O elemento ar, a chuva, os raios, a terra. Tudo nosso deve vir debaixo para cima.”

Tata Luazemi fala ainda das favas, frutos usados no candomblé, cada uma com um desígnio religioso específico.

Tata Luazemi: “há grande quantidade de favas usadas no candomblé. Aqui, como você pode ver [apontando para um preparado no pé do altar], temos a canjica, que é a representação da paz. Como hoje é quarta-feira, que é o dia da justiça, dia de Zazi, nós temos aqui orobôs, que é uma fava.”

Os orobôs (Garcinia kola) são frutos sagrados de origem africana. A origem do fruto nos diz muito sobre a origem do candomblé, uma religião (ou conjunto de religiões) afro-brasileira praticadas pelos povos africanos escravizados que foram trazidos para o Brasil.


Nesse contexto, Tata Luazemi lembra que a Baixada Fluminense é o lugar com o maior celeiro de terreiros de candomblé, tendo sozinha mais terreiros que o estado da Bahia. Ele cita que o censo de terreiros de umbanda e candomblé nos anos 2000, do qual participara, revelou 1.180 terreiros apenas em Nova Iguaçu.Tata Kavungelê disse “a Baixada é o celeiro do candomblé”. Tata Undelê faz a relação entre esse fato e a época da escravatura.

Tata Undelê: “há muitos anos atrás, a construção do candomblé nunca era em área urbana. Isso aqui, um dia, foi mata. Geralmente as pessoas montavam seu candomblé, até por conta da perseguição, no interior aonde você tinha cachoeiras, matas, locais mais ermos ou fundos de fazendas. Locais grandes onde você tinha mais acesso às folhas. A urbanização foi acontecendo e esses espaços foram se restringindo, diminuindo.”

Tata Luazemi diz que o terreiro possui uma extensão, um sítio na casa do Tata Undelê, em que são cultivadas e colhidas todas as ervas sagradas utilizadas nos cultos.Tata Luazemi fala sobre a necessidade de manter uma prática de respeito à natureza, ao sagrado. A erva é colhida, descansada, orada, lavada e purificada.

Tata Luazemi: “Não compramos nossas ervas. Toda erva é colhida com respeito ao sagrado. A hora que se planta, a hora que se colhe. Tem hora para se esfregar ela, para ela virar um medicamento. Tem todo um ritual para que a erva seja sacralizada. Ela precisa de um ritual antes de ir para o culto”.

Nem toda erva é plantada. Muitas vezes a erva é coletada na natureza, e para isso há também regras específicas de forma que se mantenha o respeito ao sagrado.

Tata Luazemi: “o Tata Undelê acorda 6h da manhã, 5h30. Entra na mata quando não temos uma erva que necessitamos plantada e vai colher as ervas. A erva não é escolhida com irresponsabilidade. Nós temos todo o respeito com a natureza. Ela vai ser colhida de um local em que vão nascer outras mudas e que vão expandir aquele caule e aquele galho”.

Tata Undelê: “a gente não retira da natureza. Você não está matando para levar para dentro do terreiro. Esse é um diferencial nosso. Uma das características que fazem essa casa ser considerada uma casa de candomblé tradicional é que a gente ainda mantém esse ritual de retirada de erva”.

Mais tarde enquanto Tata Undelê me guiava pelo jardim do terreiro, o perguntei sobre a relação do candomblé com as espécies brasileiras. Ele me explicou que o candomblé tem profundo respeito pela figura do índio. Para o candomblé, o povo indígena foi de suma importância para a criação do conhecimento sobre a natureza e sobre as propriedades das ervas no Novo Mundo. Por esse motivo, divindades e entidades indígenas são cultuadas no candomblé.

Mas não é só ao projeto Isaba Kiambote, objeto de estudo do pós-doutorado do Dr. Abrahão e que já tem planos de se tornar um livro, que se dedica o terreiro Lumyjacarê Junsara. O terreiro é Ponto de Cultura do Estado do Rio de Janeiro e participa de muitas ações filantrópicas voltadas à comunidade.


Tata Luazemi: “aqui é um Ponto de Cultura com uma cozinha sagrada. O projeto se chama Difunla Kasembe, que quer dizer “cozinha sagrada”. Assim que a pandemia deixar, nós vamos voltar aos cursos, às oficinas. Nós distribuímos cesta básica, hortaliças, peixes. Temos um minicurso de corte e costura. Então nós estamos sempre voltados, não só para dentro do terreiro, mas também para nosso entorno, nossa comunidade. Retirando algumas crianças do “caminho errado”. E nós vamos fazendo isso aqui. Não é só uma casa de candomblé, nós somos utilidade no município”.

Dessa forma, o terreiro aborda a saúde e o ensino de forma emancipatória e participativa, através de um espaço não-formal de ensino. Tata Undelê me explica o quanto o espaço informal de ensino atua de forma integral na formação do indivíduo.

Tata Undelê: “o espaço informal tem uma característica muito importante, que eu acho, que é que o ensinamento é dado desde quando se é criança. Uma das coisas que as pessoas reclamam é que as crianças não possuem responsabilidades e aqui no terreiro elas têm. É pela observação que a criança vá aprender dentro da sua estrutura, dentro da sua bagagem. A gente vai colaborando com os afazeres, com as orientações. E é ótimo, porque a criança vai crescendo com esses afazeres, com essas responsabilidades, com esse sentido de respeitar a hierarquia, com o sentido de respeitar os mais velhos.” Continua, “aqui a pessoa aprende as coisas o mais simples possível: lavar uma louça; varrer um chão; costurar. Os serviços de artesanato, quando nós vamos fazer uma festa, fazer uma conta, que também é algo sagrado. Isso tudo é desenvolvido aqui. Pois aqui é um espaço educativo. Não formal, mas é um espaço educativo. Aqui não há lousa, um quadro negro, giz, mas aqui aprendemos. Aprendemos sobre hierarquia, aprendemos como respeitar o mais velho, como você trata o meio ambiente, a planta, a comida sagrada, como você se porta ao preparar a comida. Tudo isso é uma casa de candomblé”.

O candomblé se mostra então como uma religião pautada no respeito. Essa relação de cuidado e harmonia com o espaço, com a natureza, lar das criaturas vivas e representação das forças dos Inquices. O respeito aos que cultivam e transmitem experiência, o respeito ao conhecimento e à ancestralidade. A noção de harmonia entre as coisas vivas e a noção de que nós fazemos parte de um todo. Noções essas que são essenciais para que se alcance o bem-estar.

Tata Undelê: “A gente é uma casa que trabalha uma educação, aqui dentro do terreiro, de promoção da igualdade, de culto”.

Mesmo com o envolvimento com trabalhos sociais e suas inúmeras certificações, o terreiro não passa despercebido pelos intolerantes. Em 2019, de todos os ataques a terreiros no Rio de Janeiro, 72% ocorreu em Nova Iguaçu. Nesse sentido, Tata Luazemi foi um dos idealizadores da Caminhada Contra a Intolerância Religiosa. O terreiro se manifestou junto ao Ministério Público Federal, onde agora Tata Luazemi faz parte da Comissão Contra a Intolerância Religiosa, e atuou junto ao Decradi (Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância)no combate à intolerância religiosa.


Tata Luazemi ainda é palestrante e Mestre dos Saberes na UFF e também participa da Comissão do Liberte Nosso Sagrado do Museu Nacional (RJ), representando uma casa de candomblé angola-congo, o candomblé praticado pelo povo banto.

Tata Luazemi: “Inclusive acabou de chegar aqui umas fotos do dia que assinamos o termo junto com o MPF, o Museu Nacional e a Polícia Civil para recuperar nossas peças que foram aprendidas na repressão de 1889 até 1945. Nessa época, vários terreiros foram saqueados pela Polícia Civil e esse material estava todo na Polícia Civil. Uma luta de 30 anos para Libertar o Nosso Sagrado. Vários dos nossos mais velhos não viram isso acontecer, mas nós estamos aqui para eles verem, de onde eles estão, que nós estamos lutando por eles.É a representação de um terreiro de Angola-Congo uma época em que só se procuravam o povo iorubanos. Nós temos que estar lá também.”

Lumyjacarê Junsara, no dia 28 de janeiro de 2021, fez 35 anos no mesmo local em Nova Iguaçu. Muitos anos de luta mantiveram em pé esse local que segue representando a ancestralidade do povo banto com muita honra, fé e respeito. O local segue contribuindo imensamente para o seu redor, seja em simples trabalhos filantrópicos até em representação política e institucional. O terreiro entende que o bem-estar em sociedade é um bem coletivo, que exige a harmonia entre todos os seres vivos e a natureza. Entende também que a história é um espaço de disputa essencial para que a cultura do candomblé, iniciada com os povos escravizados, se mantenha viva.


Lumyjacrê Junsara, Tata Luazemi, Tata Kavungelê e Tata Undelê me ensinaram o verdadeiro significado da expressão: você colhe aquilo que você planta. Cada etapa da “cura”, seja para enfermidade física ou espiritual, exige um respeito mútuo entre indivíduos. Respeito ao plantar e colher uma erva sagrada. Respeito ao prepará-la. E respeito a quem nos deu a possibilidade de extrair suas propriedades. O candomblé é isso, o respeito à natureza e às divindades que a regem, e a celebração da vida a todo tempo.

Tata Luazemi: “a gente bate palma e ora para tudo”.

Tata Undelê: “a gente ora cantando e canta orando, temos musicalidade. É uma celebração sempre”.

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